Testes em animais: quebrando argumentos


Testar substâncias, produtos e medicamentos em animais vivos tem sido o padrão da ciência e da indústria há muito tempo, gerando uma quantidade incontável de sofrimento físico e emocional para um número igualmente incontável de animais.

Os argumentos em defesa dessa crudelíssima prática não variam muito em seu conteúdo. A seguir, rebato os principais deles.


Argumento 01 – Animais não sofrem

Esse argumento não é mais tão utilizado, pois apenas uma pessoa completamente ignorante em ciências e incapaz de observar animais com a mínima atenção ainda reproduziria, no século XXI, esse tipo de afirmação (e, portanto, a validade de sua opinião para a reflexão sobre este tipo de assunto seria nula). Contudo, esse argumento já foi utilizado por pessoas da estatura de Descartes, que argumentava que quando um animal geme, isso não seria uma queixa, mas apenas o ranger de um mecanismo funcionando mal. Sendo assim, vale elencá-lo. Além disso, ainda que apoiadores dos testes em animais possam não usar tal argumento, seguem agindo como se com ele concordassem, já que, na prática, o ignoram.

A senciência nos animais já é um fato científico. Não resta mais dúvidas. Isso significa que eles não apenas percebem o mundo (sensibilidade), mas também possuem algum grau de consciência sobre o que percebem, sobre o que sentem, o que permite, inclusive, a presença de emoções.

Sendo assim, tratá-los como coisas passíveis de todo tipo de manuseio e imposição de incômodo físico e mental é tão imoral quanto fazer o mesmo com humanos. Trata-se, em suma, de torturar seres. 


Argumento 02 – Usar animais é necessário para não usar humanos

Se o argumento 01 toca no ponto central do erro de leitura do mundo (entender que animais não sofrem), o argumento 02 toca no ponto central do erro de leitura moral: considerando que as regras básicas da moral, como não torturar seres, já estejam pacificadas na mente dos sujeitos que defendem testes em animais (imagino que a maioria deles não saia por aí sequestrando ou assassinando pessoas), por que eles possuem limites morais tão diversos quando se trata de humanos e quando se trata de animais não-humanos?

Apenas a espécie do ser envolvido justifica tamanho abismo? Apenas por não fazerem parte de nossa espécie podem ser alvos de escravidão, prisão e imposição de todo tipo de dor? Se assim for, essa é uma discriminação tão infundada e condenável quanto as que tratam diferentemente seres humanos, por exemplo, por suas cores de pele ou sexo. Apenas um fato biológico, que em nada muda o fato de que o ser é capaz de sofrer, justificaria uma brutal diferença de tratamento.  Nesse caso, a discriminação ilógica e cruel, à semelhança das ideias de “racismo” e sexismo/machismo, chama-se “especismo”.

Em suma, por que um humano não pode ser usado à força para testes violentos mas um animal de outra espécie pode?

Basta pensar: se no lugar de animais fossem usados escravos humanos, a ala não sádica da sociedade acharia aceitável, dada a necessidade de se ter alguém para que os testes possam existir? Creio que não. Então voltamos aos questionamentos acima colocados: não há argumentos válidos que justifiquem tamanha diferença de julgamento quando a espécie da vítima não é a nossa.


Argumento 03 – Sabemos que é cruel, mas é assim que se salvam vidas 

É assim que se salvam vidas? Tirando vidas? Esse argumento só tem “lógica” para quem considera que “vida”, no sentido mais pleno da palavra, é uma exclusividade humana. Em suma, um argumento especista e ilógico.


Argumento 04 – Por enquanto, por falta de outras opções, ainda necessitamos dos testes

Além do especismo, já apresentado acima, há aí um conformismo: já temos o pretenso benefício, então não podemos perdê-lo. Deve ter sido o mesmo com o fim da escravidão humana. Ai, meu deus! Agora quem vai capinar a roça?!  

Como meu interesse é na questão ética, nem exporei os questionamentos existentes, inclusive por parte dos cientistas, sobre a real necessidade e eficácia dos testes em animais para finalidades humanas. Mesmo que esses questionamentos não existissem, nem métodos alternativos, as barreiras éticas nunca poderiam ser ultrapassadas, e elas devem sempre vir em primeiro lugar.


Argumento 05 – A lei permite

Sim, a lei permite e, para alguns tipos de produto, obriga. Não é incomum que nosso código legal não se baseie em uma firme reflexão moral. Além disso, nosso arcabouço legal é bastante contraditório se considerarmos que, ao mesmo tempo em que permite pecuária, testes em animais, rodeios e afins, apresenta textos como estes:

  1. Constituição Federal, Artigo 225, § 1º, inciso VI:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:

VII -  proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.


  1. Código penal, Artigo 391:

Praticar ato de abuso ou maus-tratos a animais domésticos, domesticados ou silvestres, nativos ou exóticos:

Pena – prisão, de um a quatro anos.

§ 1o Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 2o A pena é aumentada de um sexto a um terço se ocorre lesão grave permanente ou mutilação do animal.

§ 3º A pena é aumentada de metade se ocorre morte do animal.


No caso do código penal, ainda há o condicionante “quando existirem métodos alternativos”, mas essa é uma incongruência lógica, pois haver ou não métodos alternativos em nada muda o fato de que animais submetidos à experiências são sempre vítimas de maus-tratos.

Aliás, esse condicionante é, por si mesmo, uma contradição com a lei maior, a constituição, já que todas as práticas que submetam animais à crueldade estariam proibidas.

(Mas isso parece não ser um problema para nosso poder legislativo, já que em 2017 ele aprovou uma PEC que fez uma gambiarra no inciso VII do artigo constitucional acima citado incluindo a ideia sem sentido lógico e ético de que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro”. Ou seja, se os próprios legisladores modificam uma lei argumentando que uma prática deixa de gerar sofrimento apenas por seu nome estar escrito em alguma lista, como ter nas leis um guia certeiro para nossa moralidade?)

Voltando à comparação já feita, quem defende abatedouros, criadouros, testes, rodeios, vaquejadas, zoológicos... por estarem dentro das normas da legislação, teria escravos até 1888, certo?


Conclusão

Antes de pensarmos em qualquer questão de ordem prática sobre testes em animais (o quão relevantes são, o quão necessários são, se eles garantirão bolsas de pesquisa e títulos acadêmicos para um monte de gente...), considerando-se o fato da senciência, é preciso pensar: que direito o ser humano tem de escravizar animais e usá-los como sustentáculos de testes? Apenas quando essa pergunta tiver uma resposta satisfatória, aí sim podemos começar a discutir questões pragmáticas sobre a produção de medicamentos, cosméticos ou qualquer outra demanda humana.

As questões ligadas ao sofrimento e à propriedade sobre a própria vida são anteriores a todas as demais discussões. As questões de natureza ética são sempre primordiais.


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