Olhando para o chão: Manoel de Barros e Isaac Bashevis Singer



É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira

(Manoel de Barros)


Em seus belos textos, Manoel de Barros constrói uma particular forma de olhar para o chão. Tentou, pela poesia, tornar a natureza algo encantado e dissolver fronteiras entre animais, plantas e ambientes. A sensação que nos passa é de um amante da natureza e seus seres, alguém que viveu para contemplá-la com carinho.

Pois bem, Manoel de Barros, que orgulhava-se de ter podido vagabundar desde a meia idade até a avançada idade em que faleceu, assim vivia pois, no final dos anos 1950, herdou uma fazenda da qual tirava seu sustento criando gado. O poeta era um pecuarista. Escravizava e assassinava (ou vendia para que fossem assassinadas) as criaturas para as quais se atentava (Eu fui aparelhado/para gostar de passarinhos). Ou os bois e vacas não faziam parte de sua natureza?

Em sua Gramática Expositiva do Chão, Manoel de Barros escreveu: “O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se apoia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs”. 

Tal contaminação, contudo, existe apenas na poesia (“só a poesia é verdadeira”). Seus pássaros, rãs e bois são ilusões poéticas e não animais reais. Daí que, considerando a realidade do sofrimento, seu chão é falso.

Singer, não o Peter, mas Isaac Bashevis, o escritor polonês que, como tantos judeus, viveu seu exílio nos Estados Unidos da América por conta do holocausto nazista, pisava em um chão mais real. Não o encantava. O universo quase mágico de muitos de seus personagens em seus contos e romances não deixava seu espírito míope. Em verdade, Singer possuía uma visão incrivelmente lúcida sobre a existência e a natureza.

Em sua autobiografia, Amor e Exílio, nos diz: “Tudo o que existe é natureza e a natureza não tem piedade. Segundo ela, o que vale é o poder. Todas as espécies vivas são resultado de uma luta na qual os fracos pereceram e os fortes sobreviveram” (p. 22). E ainda: “Era atormentado não só pelos sofrimentos dos homens como também dos animais, aves e insetos.(...) Eu me ressentia não só contra os homens mas também contra Deus. Fora Ele quem dera às bestas selvagens garras e dentes” (p. 46).

Na “nota do autor” presente no início do romance “O Penitente", Singer nos conta sobre uma entrevista que havia dado anos antes: “exprimi um severo protesto contra a criação e o Criador. Lembro-me de dizer que, embora eu acreditasse em Deus e admirasse Sua divina sabedoria, não podia ver ou glorificar Sua misericórdia. Finalizei a entrevista dizendo que, se pudesse fazer um piquete diante do Todo-Poderoso, carregaria um cartaz com o slogan INJUSTO COM A VIDA!”. Na mesma nota, nos diz: “Não há nem pode haver justificativa quer para a dor do lobo faminto, quer para a do cordeiro ferido”.

E, em outro livro (O Escravo), a narrativa nos diz: “Por necessidade, Jacó tinha de combater as moscas e a vérmina que tanto incomodavam a ele como às vacas. Não havia outra alternativa senão dizimá-las. Ao andar, não podia coibir-se de calcar vermes e sapos, e, quando apanhava erva, muitas vezes encontrava cobras venenosas que silvavam e o matariam e que Jacó destruía com um pau ou uma pedra. Mas sempre que lhe acontecia isso, considerava-se um assassino. Em silêncio censurava o Criador por forçar uma criatura a dar cabo de outra" (p. 69-70).

O sofrimento dos animais e a violência inerente à natureza aparecem em diversas de suas obras. Elas permeiam suas histórias mesmo não sendo a centralidade das tramas. Em sua lucidez, Singer era um vegetariano convicto (ainda que não fosse vegano, algo bem mais raro em sua época). Como não encantava a natureza, podia fazer escolhas baseadas em princípios mais realistas, mesmo vivendo em um universo à beira da fantasia e do mistério.

Em momentos de realismo escancarado, através da boca ou da descrição de seus personagens, podemos ler verdades como: “Há muito eu chegara à conclusão que o tratamento do homem para as criaturas de Deus torna ridículo todos os seus ideais e todo o pretenso humanismo. Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve que ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada escaldada em água quente. (...) Quando se trata de animais, todo homem é um nazista” (O Penitente, p. 41-42).

Já Manoel de Barros vivia em ilusão. O que não inventava era falso. Por mais que sua ilusão pareça singela e inocente para muitos de seus leitores, ela omitia a realidade, o chão do mundo. Ao omiti-la, mascarava a tragédia. Dava uma cara mágica ao sofrimento real, enquanto Singer revelava a realidade por trás da existência mágica de seus personagens. A natureza de Manoel de Barros, poeticamente manufaturada, ocultava o grau da barbárie que ele impulsionava por dinheiro. Bastante prosaico para quem se vendia como pura poesia. A dor real dos bois assassinados não era inventada. Para o poeta, portanto, segundo sua “lógica”, a dor seria apenas mais uma falsidade a ser ignorada. Há uma terrível perversidade nessa postura.

O chão de Manoel era si mesmo, e lá brincava cronicamente após checar o balancete.

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