Olim Lacus Colueram


Há algumas composições eruditas que alcançaram conhecimento popular, mesmo que boa parte das pessoas desconheça qualquer informação sobre tais obras, como autor, período ou intenções. Exemplos são a Primavera de Vivaldi, a Marcha Fúnebre de Chopin e a Marcha Nupcial de Felix Mendelssohn. Outra música que atingiu esse patamar é O Fortuna de Carl Orff (1895-1984), tantas vezes reproduzida em momentos em que se tenta criar um clima de mistério em programas de televisão e até mesmo em propaganda de biscoito. É uma pena que o conteúdo de sua letra, uma reflexão sobre a impermanência da sorte, não é também tão conhecido.

“O Fortuna” integra a cantata cênica Carmina Burana (1936), obra composta por Orff a partir de alguns cantos anônimos medievais escritos por cultos clérigos que, além de talvez comporem hinos sacros, vagavam compondo canções que, muitas vezes, destilavam veneno e sátiras às hipocrisias da sociedade, à própria Igreja e exaltavam os prazeres do amor, da mesa e dos jogos. “Boa parte da poesia profana da época foi escrita pelos clérigos desempregados”, nos informa Maurice Van Woensel, autor de um precioso livro sobre as Carmina Burana que me acompanha desde a adolescência. Acontecia que a oferta de clérigos era maior do que a necessidade, então muitos, conhecidos como goliardos, ficavam vagos e tornavam-se errantes, caminhando de uma escola ou universidade para outra, encontrando outros goliardos e, por vezes, entregando-se às liberdades mundanas ou até mesmo à completa devassidão. Seus cantos eram muitas vezes a forma com que sobreviviam, trocando o fornecimento de alguma alegria em pousadas e tabernas por local para dormir, comida ou bebida. Obviamente, era difícil esperar que alguém os pagasse, nesses locais, por composições sacras. Eram as irônicas e carnais que faziam sucesso e garantiam a sobrevivência dos andarilhos.

Carl Orff encontrou na biblioteca de sua cidade natal, Munique, uma série de manuscritos do século XIII que registravam cantos de goliardos dos séculos anteriores, provavelmente do século VIII em diante, antes pertencentes ao acervo da abadia beneditina de Benediktbeuern, na Baviera. Esses manuscritos foram publicados em 1847 sob o nome de “Carmina Burana”, ou canções de Beuern, dado o nome da abadia onde haviam sido conservados por séculos.

Contudo, o foco deste ensaio não é Orff nem a famosa “O Fortuna”, mas outro canto também musicado por ele na mesma cantata: Olim Lacus Colueram, triste texto que foge do padrão dos temas compostos para alegrar a população embriagada e sedenta por prazeres carnais das estradas medievais. Trata-se de um canto que dá voz a um cisne, outrora belo e nadando em um lago, agora tostado e chamuscado, sendo devorado entre insensíveis dentes.

Veja a letra original, seguida pela tradução:


Olim lacus colueram,

olim pulcher exstiteram, 

dum cygnus ego fueram.

Miser, miser! 

modo niger 

et ustus fortiter.

 

Girat, regirat garcifer; 

me rogus urit fortiter;

propinat me nunc dapifer. 

Miser, miser!

modo niger 

et ustus fortiter. 

 

Nunc in scutella iaceo, 

et volitare nequeo, 

dentes frendentes video: 

Miser, miser! 

modo niger 

et ustus fortiter.

 

(Tradução)

Outrora eu morava no lago, 

outrora eu era belo, 

quando eu era um cisne. 

Pobre de mim! 

Agora estou preto 

e todo queimado. 

 

O cozinheiro me gira em um espeto, 

a pira me queima violentamente 

agora o garçom me serve. 

Pobre de mim! 

Agora estou preto 

e todo queimado. 

 

Agora estou na bandeja, 

e não posso mais voar; 

vejo dentes arreganhados: 

Pobre de mim! 

Agora estou preto

e todo queimado


Esse esforço de colocar-se no lugar do outro é fundamento da compaixão e da ética. Esse sentir a realidade de forma direta é fundamento da poesia.

Saber que em algum momento, há algo entre oito e treze séculos, havia alguém sentido o absurdo de nossa normalidade e cantando isso em tabernas, enquanto pessoas devoravam pobres aves afogando-se em enormes canecas de cerveja, é, ao mesmo tempo, um encontro emocionante com um parente do passado e uma sensação terrível de que após tanto tempo nossa cultura pouco mudou na maneira como percebemos os animais. Imagino a cara do “público”, já embriagado em uma típica taberna da época, à espera de algum canto sacana sobre mulheres devassas ou padres tarados, ao ouvir esse triste petardo. Imagino também a coragem de nosso anônimo compositor ao entoar tal pesar.

Esta é minha pequena homenagem para um texto e uma música que me acompanham há décadas e para um parente distante e anônimo que peregrinava por sendas, estradas, ruelas, pousadas, tabernas e vilas medievais tentando usar sua arte para tocar pessoas e transformar a insanidade habitual. Pelo menos é assim que ele vive em minha imaginação.


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