O que é matar? (uma reflexão sobre a sobre a diferença entre ovolactovegetarianismo e veganismo)

 


Para bem entender como um vegano pensa, vale abordar brevemente algo sobre a especificidade da visão vegana e sua imensa diferença em relação ao vegetarianismo comumente conhecido, o ovolactovegetarianismo. Para isso, comecemos com uma história: certa vez, em uma rede social, um conhecido publicou uma foto de um jovem parente segurando um peixe que acabara de pescar, com um comentário de que tal “experiência em família não tem preço”. Respondi então mostrando o preço que o peixe pagou: ser perfurado por um metal sentindo extrema dor, ser puxado para fora de seu habitat por este mesmo furo dolorido, ficar certo tempo fora da água – o que equivaleria para nós a ficar dentro da água, com toda a angústia de não respirar – ser manipulado por seres estranhos até ser jogado de volta para a água com toda a dor e desespero resultantes dessa experiência, podendo inclusive ter morrido em decorrência de uma infecção. Sua tréplica foi reafirmar que eles não o comeram, ele não foi para a panela, então tudo ficou bem para todos.

Essa história mostra que é comum se diferenciar radicalmente o status de matar um ser ou torturá-lo.

Pensemos sobre isso: aquilo que comumente chamamos de morte diz respeito ao fim da vida, à morte absoluta. Em seu oposto, normalmente se coloca a vida. Ou se está vivo ou se está morto. Contudo, como polo oposto da morte absoluta, podemos idealizar a existência de uma “vida absoluta” e, entre esses pólos, um contínuo, uma gama de tendências, elementos e atos que nos mortificam ou vivificam. Não estamos apenas mortos ou vivos. Em vida, podemos estar mais vivos ou mais mortos. Podemos nos vivificar ou mortificar, assim como podemos vivificar ou mortificar a outros seres, humanos ou não.

Há, então, o que plenifica a vida e o que plenifica a morte, para além do que gera a morte absoluta, como o assassinato, ou o que gera a vida em senso estrito, como os atos reprodutivos.

É difícil definir o que seria uma vida plena, ainda mais para seres de outras espécies, e não quero usar a complicada ideia de “liberdade” para isso. Contudo, definir o que pode mortificar um ser é mais óbvio. No caso dos animais, não é difícil reconhecer o que fazemos que os impede de gerir suas próprias vidas e viver de acordo com seus próprios hábitos, ou seja, aquilo que os mortifica.

Não mortificá-los inclui não prendê-los, não torturá-los, não debicá-los, não engaiolá-los, não enjaulá-los, não acorrentá-los, não adestrá-los, não isolá-los, não paralisá-los, não testá-los, não pescá-los, não montá-los, não chicoteá-los, não reduzi-los a exposições em zoológicos, a objetos de entretenimento, a produtos comercializáveis, a matérias-primas etc.

Em suma, não se pode reduzir a consideração moral dos animais apenas a tirar suas vidas ou não. Aí, no conceito de morte, encontram-se as diferenças entre o ovolactovegetarianismo (o ato de retirar apenas as carnes do menu, mas seguir se alimentando de leite e ovos) e o veganismo, assim como entre a visão bem-estarista (que pretende que haja melhoria das condições de vida dos animais escravizados, mas não necessariamente o fim da escravidão) e a visão abolicionista, que almeja o fim da escravidão dos animais.

Respeitar a vida de um animal depende, obrigatoriamente, de não explorá-lo de nenhuma forma, de não torná-lo escravo da humanidade. Isso independe das variações possíveis para o ser escravizado: ser morto para virar bife, “apenas” viver preso para que se tire seu leite ou seus ovos (existência terrível e cheia de sofrimento) ou ser usado para quaisquer outros usos atrelados a alguma necessidade humana ou atividade econômica.

O veganismo, portanto, apresenta uma visão ampla de não exploração, de não opressão, contra a escravidão e a geração intencional de violência contra seres sencientes. Trata-se de uma proposta de recusa a ações evitáveis claramente mortificadoras.

Assim sendo, a proposta vegana é obviamente correta, do ponto de vista ético, e os argumentos acima descritos confirmam tal julgamento. Logo, como se poderia, dentro dos limites da ética, manter uma prática que a contrarie?


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