Literatura e aprimoramento ético pela ampliação e pela centração do/no mundo vivido


Literatura e aprimoramento ético pela ampliação e pela centração do/no mundo vivido

  1. Ética, literatura e ampliação do mundo vivido

Para que possamos tomar boas decisões de ordem ética, é essencial que consigamos nos colocar no lugar dos outros. Para realizarmos tal movimento, que expressa-se por um sair de nós mesmos, ajuda-nos a diversidade de experiências que possuímos, pois elas facilitam-nos o processo de tentarmos entender o que pode se passar com a alteridade ao ser afetada por certas circunstâncias. Contudo, nossas experiências de vida – mesmo que bem captadas por uma atenção bem desenvolvida – são limitadas. O número de experiências pelas quais realmente passamos é pequeno diante da imensa variedade de experiências vividas que formam o mundo humano. Sendo assim, formas variadas de contato com experiências alheias, para além de nossas experiências diretas, são de grande valor.

Um exemplo é pelo contato com a literatura, a partir do qual podemos viver dramas alheios a nós, entrar na pele de outras pessoas, viver outros lugares. A arte pode, assim, por via do trabalho com nossa imaginação, expandir nossas existências para além de nossos limites corporais e espaciais.

Uma das consequências possíveis do estímulo da imaginação é, assim, a ampliação do mundo mental das pessoas, considerando-se que ampliar o próprio mundo é de extrema eficácia para o aprimoramento de questões éticas, para as quais é imprescindível ter a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Nossa vida é bem entendida como um drama, como a vivência de uma trama, com todos os seus incontáveis fios tecidos nas mais variadas direções, vindos das mais variadas localidades, entrecruzados com os mais variados nós (o próprio termo “trama” vem do mundo têxtil, assim como “texto"). O contato com outros dramas enriquece o nosso próprio, torna nossa experiência de vida mais rica, nos torna mais sábios, alarga nosso ser e, assim, espera-se, podemos nos entrelaçar de forma mais consciente, atenciosa (neste caso, a imaginação auxilia a atenção), compassiva (por podermos entender melhor os dramas alheios) e responsável (por termos mais repertório para averiguar melhor nossos próprios atos).

O contato com uma arte como a literatura (mas isso vale para outras artes) pode, portanto, tornar nossa experiência do mundo mais rica e profunda, ajudar no aprimoramento de nossas maneiras de perceber, significar e vivenciar o mundo (aprimorar cosmovisões) e diminuir embotamentos perceptivo - elementos fundamentais para nossa evolução moral.

Ao lermos um bom autor, como um bom poeta, por exemplo, podemos viver experiências poéticas através da escrita de outra pessoa por via da ressonância e da repercussão que imagens poéticas podem gerar no leitor. A poesia de outrem soa novamente em nós – ressoa -, ouvimos o poema, e então podemos repercuti-lo como se ele partisse agora de nós: 

 

A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser [...]. Dito de maneira mais simples, trata-se aqui de uma impressão bastante conhecida de todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos toma por inteiro [...]. É como se, com sua exuberância, o poema reanimasse as profundezas do nosso ser.

 [...]

As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência. (BACHELARD, 1993, p.7).

 

As ideias de repercussão e ressonância em Gaston Bachelard, portanto, apontam para a possibilidade da poesia gerar alargamentos existenciais no leitor: possibilita transformar fundamentos da experiência de mundo – transformações cosmológicas. Pela poesia podemos nos transformar profundamente, inclusive no modo como percebemos, significamos, representamos e habitamos o mundo, os lugares, nós mesmos.

Bem habitar o mundo é estar nele da maneira mais plena possível. Cada esforço, insight ou atitude que nos faz estarmos mais conscientes no mundo aumenta nossa capacidade de habitá-lo. Por via da poesia, acredito – junto com Bachelard -, podemos ampliar tal capacidade.


Certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a nossa vida [...]. Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento do nosso ser nesse universo que é o nosso. (BACHELARD, 2009, p.8).


Assim sendo, a poesia, ou o desenvolvimento do senso poético – com todo o cuidado de não reduzir a poesia apenas a alguma utilidade ou função -, pode ser de grande valia para um processo educativo (escolar ou não) preocupado com o surgimento de cosmovisões saudáveis, justas e respeitosas, ou seja, para que possamos nos desenvolver eticamente.


  1. Ética, literatura e centração no mundo vivido

Além de desenvolver nossa imaginação, o contato com obras artísticas também pode reforçar nossa atenção.

No campo da poesia, há um espaço destacado para tal movimento: a captação de imagens poéticas é um dos exercícios de maior fusão entre pessoa e lugar, entre mente e mundo. Captar atentamente um lugar é tornar nossa experiência de mundo mais viva, seja por um período de tempo ou por um instante. 

(Para os geógrafos, vale dizer que essa experiência é também das mais ricas percepções geográficas possíveis, uma das mais profundas consciências espaciais).

“Captar profundamente um lugar” é uma forma de “estar plenamente presente ao momento presente”, esforço necessário para o uso hábil de nossa atenção.

Na tradição Zen-budista japonesa, essa postura gerou, além de cerimônias dedicadas ao ato de estar presente – como a cerimônia do chá -, a poesia conhecida como Haicai, na qual, em três versos, se captura um momento em palavras, sem julgamentos, sem comentários: apenas a percepção atenta de um momento, de um lugar, como neste clássico exemplo do grande poeta Matsuó Bashô (2008, p.11), que viveu no século XVII:

 

Velho lago

Mergulha a rã

Fragor d´água

 

Tal esforço de trazer a mente para o momento presente e “apenas captá-lo” configura-se como uma das mais nobres e efetivas formas de desenvolvimento de nossa atenção. Antes de julgar o momento, antes de fermentá-lo com nossos esforços imaginativos e reflexivos, percebemos apenas o que o mundo nos apresenta. Dessa forma, o ato cognitivo e abstrato do pensamento pode partir da percepção das coisas como elas são, o que nos direciona para julgamentos que não antecedam a percepção, a deformando, de forma que percepções deformadas sirvam de base para reflexões deformadas que gerem ações deformadas. Apenas percebemos, então imaginamos, refletimos e agimos… Eis um convite ético de grande interesse.


3 - Amálgama atenção-imaginação

Precisamos estar atentos. Isso nos centra no mundo, conectando-nos profundamente à existência concreta.

Precisamos saber viver a complexidade de um mundo fundamentalmente relacional: sairmos do centro do mundo. A imaginação pode nos levar para fora de nós mesmos, conectando-nos profundamente à natureza complexa da existência.

A imaginação nos amplia, a atenção nos centra. Ao mesmo tempo, a atenção permite que percebamos elementos mais robustos para que tenhamos processos imaginativos mais robustos, e a imaginação permite que direcionemos nossa atenção para elementos antes ocultados (o que é diferente de deformarmos o mundo percebido, substituindo-se a atenção irmanada com a imaginação pela pura imaginação que soterra e aniquila a atenção e a razão, de forma que vivamos uma ficção, na qual, por exemplo, qualquer arbitrariedade moral pudesse ser justificada, fazendo sentido na realidade paralela habitada pelo sujeito).

O duplo movimento da centração no mundo vivido e da ampliação do mundo vivido revela um amálgama entre atenção e imaginação que alarga o ser e o aprofunda: alarga-o horizontalmente e verticalmente.

O ser resultante de tal aparente contradição - que amplia-se e centra-se - deve ser almejado.

Referências

BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BASHO, Matsuo. Trilha Estreita ao Confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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