O animal e a lâmina (crônica)



Dia desses, utilizando uma famosa camiseta de ativismo vegano defronte ao espelho, após anos de prática vegana, percebi pela primeira vez que o reverso da palavra animal é lâmina. Lâmina!

(O acento foi colocado pela minha imaginação. Mas o que é um acento numa hora dessas?).

Uma bomba matinal para um vegano metido a escritor.

Deveria eu levar mais a sério os colegas dialéticos, para os quais o oposto de algo já está no algo, o aniquilando na geração de outro algo? Não sei... a lâmina está no animal, mas, normalmente, de início está apenas em um animal, que a faz, então, estar nos demais. É dialética quando a negação parte de um corpo diverso ao corpo que sofre a ação, mesmo que todos sejam, em realidade, partes de um mesmo todo - animais? Também não sei e, sabiamente, decidi não prosseguir tal elucubração. Algo mais profundo chamou-me: a imagem da lâmina, aniquiladora do animal, estar no próprio animal, o contrariando, lá, no íntimo de seu substantivo, arrebatou-me instantaneamente.

 O que é um substantivo? Apenas um conjunto de letras com a capacidade de diferenciar um objeto de outro nomeado por outro conjunto de letras?

Mantive-me longos minutos arrebatado defronte ao espelho. Envergonhei-me da reflexão gramatical ao lembrar-me da lâmina real.

Uma tentativa de imagem poética veio-me à mente:


A REVOLUÇÃO DA LÂMINA

INTRINSECAMENTE SUBVERTE

O ANIMAL CONTIDO

 

Permaneci em frente ao espelho contemplando palavras.

Ah, que espírito horrível o nosso, que contempla palavras enquanto a lâmina cai!

Uma palavra que traz em si, no seu oposto, o oposto de sua permanência: sua aniquilação, sua morte. Que força imagética!

E que patético, eu, humano, em frente ao espelho, sentindo forças imagéticas e pensando em palavras enquanto a lâmina existe. Restar-me-ia, se decente fosse, apenas jogar-me aos gritos que compõem nosso silêncio.

O que é esse conjunto de símbolos impressos, jatos de tinta, letras, em comparação com a lâmina real, afiada, aniquiladora de seres?

Ainda assim, a lâmina e a palavra lâmina existem. Coexistem.

Às vezes, algo comumente inerte, como um monte de traços numa folha de papel (que também é uma lâmina, e por vezes afiada), nos desperta para a realidade da realidade, a vida da vida.

Às vezes.

A palavra jogou-me no abismo. Vívido pescoço, a palavra jogou-me no abismo, no teu abismo, no abismo do teu fim.

Sei que a morte e a vida não são apenas um par de opostos. Há muito entre a vida e a morte. Vivificamos e mortificamos. Mas há uma fronteira especial. A lâmina! A lâmina! Este horror que, comumente, semeia o veganismo e energiza o vegano.

O vegano que estava lá, defronte ao espelho, com olhar longínquo. O que via, para além do espelho, para além de seu próprio pescoço, eram pescoços bovinos, galináceos, suínos...

Todo pescoço possui em si o avesso da lâmina.

Saí então, no aperto do horário, do espelho para a cozinha, para o desjejum, para o ônibus, para a vida. Minha vida animal.

E sigo saindo, diariamente saindo, enquanto a lâmina não me encontra.


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