Peronius de Mileto e Mark Head: fragmentos biográficos (Pseudohistória, 2010)



Muitos pensadores e pensamentos perderam-se no tempo, sem discípulos para levá-los adiante, não registrados em papel, nem mesmo em pedra. Quão diferente teria sido a humanidade se em vez de Sócrates, Platão e Aristóteles conhecêssemos outros pensadores com visões de mundo completamente diferentes?
Um destes pensadores perdidos na História é Peronius de Mileto (621-560 a.C.), esquecido completamente até o século XII, depois esquecido novamente até o século XIX, depois praticamente esquecido até hoje.
Quase tudo o que escrevera ou ensinara perdera-se. Contudo, uma ínfima parte de seu legado fora descoberta no fim do século XIX pelo arqueólogo irlandês Mark Head em uma escavação. Trata-se de apenas dois pergaminhos escritos por um monge no século XII (que, sabe-se lá como, obteve acesso à inigualável herança intelectual de Peronius). Um pergaminho possuía algumas ideias e outro alguns dados biográficos de Peronius sistematizados pelo monge.
Os registros sobre este monge dizem que era um livre pensador que virou monge apenas pela comida e vinho grátis e que toda noite fazia inflamados discursos anticlericais nas tabernas de sua região. Ficara famoso por inventar uma dança similar ao cancan, mas dançada com o hábito. É ao nosso nobre monge que devemos agradecer por manter as ideias de Peronius de Mileto vivas.
Sobre a vida de Peronius, apenas sabe-se que fora rival intelectual de Tales e que pregava suas ideias apenas em casa, para quem quisesse ouvir. Achava que as pessoas deveriam ir até o conhecimento, e não o conhecimento até as pessoas. Assim, ficou em casa durante toda a vida com seus únicos dois discípulos, sua esposa e seu filho.
Sua rixa com Tales dava-se principalmente pela noção de verdade dos dois importantes pensadores e pela oposição feita por Peronius à noção de Tales de que tudo foi feito a partir da água. As batalhas filosóficas entre Tales e Peronius são os únicos acontecimentos públicos da vida de Peronius que se possui notícias. Parece que ele chegou a fazer um longo discurso chamado “Sobre o porquê de não existir um princípio único de criação das coisas e das coisas criadas pelas coisas”, cujo subtítulo era: “Do porquê Tales é um panaca: uma abordagem pós-jônica”.
De suas ideias, sobrou apenas um conjunto de sentenças que resume sua visão de mundo, além de poucos aforismos avulsos. A sólida relação entre estas sentenças forma um todo coeso e iluminador:

Sei que sou.
Se bem que não, pois como sei que sei?
Se bem que sim, pois sei que sou, mesmo que não saiba como sei que sei.
Não, mas eu sei que sei que não sei se sou eu que sei.
Sim, mas eu sei que sei. Só não sei se eu sou eu.
Não porque sim.
Sim porque não.

Este é todo o registro desta linha argumentativa, que poderia facilmente ter entrado para a história como o início de uma diferente compreensão acerca da Dialética, do “eu” e da verdade. Não entrou, obviamente, mas, por uma graça de todos os deuses existentes desde Mileto, esta compreensão fascinante acerca da natureza das coisas chega hoje até nós. Ou até alguns de nós. Certo, até meia-dúzia de nós. Mas na antiga Grécia os pensadores já eram meia-dúzia. E, desde então, sempre foram meia-dúzia. Ainda que a meia-dúzia possa ser proporcional ao tamanho da população, nunca deixaram de ser meia-dúzia.
No século XIX, como já dito, o então já reconhecido arqueólogo Mark Head descobriu estas ideias e passou por uma profunda mudança existencial que alterou radicalmente sua maneira de pensar e entender o mundo.
Ao debruçar-se sobre elas, foi acometido por uma profunda revolução interna. Dizem que repetia as sentenças de Peronius como a um mantra, sem parar, horas em seguida, até o dia em que simplesmente entendeu. Alterou seu método de pesquisa e passou a ser, além de arqueólogo (ocupação que não abandonou até o fim da vida), filósofo e escritor, além de ter escrito algumas poucas colunas para jornais e revistas da época.
Após pesados esforços de reflexão, pesquisa e sistematização, e a impossibilidade de levar suas ideias e as ideias de Peronius de Mileto para as universidades europeias, resolveu criar sua própria universidade. Assim como no caso de Peronius, os registros deste bravo ato são poucos. O principal deles é o discurso proferido por Mark na celebração de inauguração da Universidade. Nele é possível entender um pouco o espírito deste revolucionário conhecimento:

Desenvolvi uma nova forma de gerar-se conhecimento.
Trata-se de um método de organização do pensamento (das percepções às representações) cujo princípio é a tentativa de se estabelecer reduções ao absurdo, que é a natureza última da realidade.
Quanto mais tarde na escala do tempo geológico algo surgiu, mais absurdo é, sendo a vida o cúmulo do absurdo e a consciência o ultrapassando.
Agora vos pergunto: como algo que é metabsurdo pode desejar compreender algo? É por isto que não almejo compreender nenhum fato, mas sim perceber a realidade última dos fatos: o absurdo. Neste sentido, meu método é mais honesto que as ciências de nosso tempo. 
Posto que honestidade não possui sentido em um mundo de natureza absurda, meu conhecimento se faz sem papel. 
Assim, o estou considerando morto.
Esta Universidade está fechando suas portas”.

Após este episódio, o professor Head retirou-se e não mais se ouviu falar dele até que, alguns anos depois, poucas semanas antes de sua morte, concedeu uma pequena entrevista para um folhetim estudantil local chamado “Cadernos Sociais", que reproduzimos traduzida abaixo:

CS – Você possui alguma influência intelectual ou concebeu tua visão de mundo por si mesmo?
Mark – Algumas. Depende do campo de pensamento. Normalmente, estudo visões antagônicas sobre o mesmo assunto para perceber semelhanças, diferenças e limites argumentativos de todos os lados. Serve-me como vacina.
Contudo, vale citar uma fonte sempre presente em meu aparato cognitivo: o pensador Peronius de Mileto. Ele foi contemporâneo de Tales, com o qual possuía certos entreveros. Mas pouca coisa dele chegou até nós, principalmente um pequeno fragmento que diz:

Sei que sou.
Se bem que não, pois como sei que sei?
Se bem que sim, pois sei que sou, mesmo que não saiba como sei que sei.
Não, mas eu sei que sei que não sei se sou eu que sei.
Sim, mas eu sei que sei. Só não sei se eu sou eu.
Não porque sim.
Sim porque não.

Também se sabe que Peronius pregava suas ideias apenas em casa, para quem quisesse ouvir. Achava que as pessoas deveriam ir até o conhecimento, e não o conhecimento até as pessoas. Assim, ficou em casa durante toda a vida com seus únicos dois discípulos – sua esposa e seu filho. Grande figura!

CS – De fato! E estas ideias exerceram muito poder sobre ti?
Mark – Com certeza. Alteraram completamente minha forma de viver a vida. Nossa sociedade, cada vez mais, se baseia em um modelo de ciência inspirado em coisas como o bordão cartesiano “Penso, logo sou” ou na ideia de experiência de Francis Bacon. Se se baseasse em “Não porque sim. Sim porque não”, possivelmente viveríamos em um mundo completamente diferente.

CS – Mas como estas ideias alteraram seu modo de perceber o mundo?
Mark – Simples. Revelou-me que a vida deve ser antes de tudo uma postura de contemplação do Absurdo. Alguém já disse há séculos: "credo quia absurdum". Isto me parece bem sábio.

CS – Foi daí que a ironia entrou em tua vida?
Mark – Sim, pois estando o Absurdo na profunda natureza da realidade, avistei na ironia um ótimo método de percepção e sistematização do mundo, algo como uma raiz epistemológica e ontológica.
Eu acho lamentável que a ironia, assim como outras “figuras de linguagem”, seja considerada apenas um enfeitezinho da língua, uma brincadeirinha. Pra mim ela é um centro estruturante da cosmovisão. É um ponto de partida cosmológico.

CS – Mas que lugar você vê para o uso da razão em nossa vida?
Mark - A razão é o melhor instrumento para levar a razão ao seu limite, dobrá-la sobre si mesma e transformar seus constructos em vazio ou ironia.

CS – É de fato uma oposição a todo o constructo intelectual moderno.
Mark – Não penso muito nisso como um propósito, tenho mais o que me preocupar do que com as crenças modernas. Mas é um fato. Veja: o Universo existir é algo por si só absurdo, do nada surgir algo e daí esse algo se transformar em algo como o Universo, com suas galáxias, sistemas planetários, buracos negros e toda sorte de maluquices maravilhosas. Aí desse monte de matéria surge vida, o cúmulo do absurdo, e da vida surge consciência, sobre o mundo e sobre ela própria, ou seja, algo que ultrapassa o cúmulo do absurdo. Agora pergunto: como algo que está além do absurdo, algo metabsurdo, pode desejar sistematizações simplistas, coerentes, lineares, científicas? É por isto que não almejo compreender o mundo, mas sim estar aberto a “ele” e seu esplendoroso absurdo. Neste sentido, creio ser minha postura mais honesta que todas as ciências de nosso tempo, certamente.
Para além desta contemplação do absurdo, dedico-me também a ironizar a hipocrisia que está no fundamento dos conhecimentos e atitudes que pretendem tratar o mundo como uma ordenzinha medíocre, encaixável em nossas linguagenzinhas e sisteminhas explicativos, e que geram, muitas vezes, códigos morais hipocritamente defendidos. Meu foco é, então, no absurdo, que é o centro da existência, e na ironia, que é por si só toda uma arte.

CS – Mas nem sempre você escreve de forma irônica, certo?
Mark - Certo. A ironia é um método muito apreciado, mas não quero me criar limites metodológicos. Deixemos isto para os acadêmicos.

CS – Estamos terminando. Você gostaria de deixar mais alguma mensagem?
Mark – A corrupção do incompreensível é o compreensível.
*
Assim encerram-se os registros sobre a vida pública do professor Head, ainda que, postumamente, algumas coletâneas de textos seus tenham sido publicadas. Contudo, sua contribuição ao pensamento humano fugiu ao seu controle e tocou diversos intelectuais e artistas independentes desde então.
Peronius de Mileto e Mark Head foram, portanto, pensadores fundamentais para a humanidade, ainda que sem nenhuma relevância para sua história.


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