Ficam cuidando de animais enquanto pessoas passam fome… (2010*)


Quantos de nós, ativistas pela relação eticamente aceitável com os animais, pelos direitos dos animais, pela abolição da escravidão dos animais, nunca ouviu essa crítica? Dentre tantas reações infundadas contra nossas posições ouvidas nos diálogos cotidianos, esta é uma sempre presente: “se preocupam tanto com animais enquanto há pessoas passando fome, enquanto há tanta miséria, tantas injustiças sociais…”.

Uma primeira questão é de ordem prática é: por que esses que nos acusam entendem que quem ajuda e se preocupa com animais, automaticamente não ajuda nem se preocupa com humanos? Tal oposição não se sustenta obrigatoriamente. Pode ser verdade para algumas pessoas, mas não é uma oposição lógica obrigatória. Porém, há outras questões em jogo, e é sobre elas que falarei a seguir.

Há um tipo nefasto de consenso em nossa sociedade de que os animais não-humanos são inferiores aos humanos. Trata-se de uma tradição milenar e encontrou guarida, por exemplo, em filosofias que consideram a razão, aos moldes humanos, como o parâmetro para o merecimento ou não de respeito, assim como em diversas cosmovisões que consideram os seres humanos como o centro do mundo. A redução de animais a puros serviçais é muito antiga, sendo que na modernidade científica, eles se tornaram apenas máquinas, e nas sociedades industrializadas, apenas matéria-prima.

Toda esta longa e triste corrente de pensamento e ação deve ser radicalmente questionada: o que é que nos faz valorar um ser? O que faz um ser ser digno de respeito? É mesmo apenas a razão? É o fato de poder usar uma linguagem semelhante a dos humanos? Para nós, veganos, não. Para nós, todo animal, independentemente de suas características específicas, merece o mesmo direito à vida em liberdade, sem ser violentado, do que um humano.

Essa opinião é reforçada se compreendermos que os animais, e isto é certeza para as espécies que mais costumamos explorar, possuem senciência, ou seja, possuem sensibilidade (percebem o mundo) e algum tipo de consciência sobre o mundo percebido. Não é preciso que a consciência seja do mesmo tipo que a dos humanos para que o ser seja respeitado. Não é preciso que o animal procure interpretações abstratas sobre o porquê das coisas que percebe para que seja respeitado em seus interesses mais fundamentais: não ser preso, não sofrer agressão, não ser submetido à dor, não ser assassinado ou não se tornar escravo de outro ser.

Talvez bastasse repetir a frase do filósofo Jeremy Bentham: “não importa se os animais são incapazes ou não de pensar. O que importa é que são capazes de sofrer”. Porém, para evitar soluções malucas sobre como explorar um animal sem gerar dor (bem-estarismo), é de grande importância entendermos que a questão ética principal não é a dor em si, ou seja, não é possível julgar a moralidade de um ato apenas pela quantidade de dor que gera, pois algo que não gera dor pode também ser uma violência. A questão, portanto, é que os animais não podem ser vistos como propriedade humana, pois não estão no mundo para nos servir. Essa é a questão de fundo do veganismo. Trata-se, portanto, de uma questão de liberdade, de não exploração.

Assim sendo, agir em prol da libertação dos animais das amarras criadas pelos humanos não é menos importante do que agir em prol da libertação dos humanos de suas próprias amarras. Tanto a opressão de animais não-humanos como as opressões ocorridas entre humanos constituem injustiças, violências desnecessárias baseadas em discriminações e preconceitos sem fundamentos sólidos e seguem a mesma lógica: um grupo acredita ser superior a outro grupo e crê que tal pretensa superioridade lhe daria autorização para subjugar e fazer com tal outro grupo o que desejar.

Colocadas as posições acima, o questionamento inicial: “ficam cuidando de animais enquanto pessoas passam fome…” revala-se sem substrato. Tanto animais não-humanos quanto animais humanos são vítimas de modos de vida violentos e injustos, recheados de opressões, baseados na coisificação da vida e na redução desta a matéria-prima, sendo que nos dois casos são criadas pretensas justificativas morais, políticas e econômicas para tais atos.

Nosso modo de agir, considerando que tal situação injusta existe, também é similar: do mesmo modo como o assistencialismo aos humanos não resolve a origem dos problemas, mas ajuda as pessoas que naquele instante passam fome, frio ou solidão, o cuidado com os animais abandonados ou vivendo nas ruas, por exemplo, é de grande importância para eles, ainda que o problema não seja resolvido enquanto não houver um modo de vida humano realmente não exploratório, não baseado na apropriação de uns pelos outros.

Em outras palavras, precisamos ajudar os seres que sofrem e, ao mesmo tempo, buscarmos soluções para as origens dos sofrimentos. Esse duplo esforço independe da espécie do ser que sofre. Abandonando-se o especismo, a pergunta que dá título a este ensaio torna-se tão absurda quanto as acusações “ficam cuidando de mulheres enquanto homens passam fome…” ou  “ficam cuidando de negros enquanto brancos passam fome…”. 

* Publicado na ANDA em 2010 e no livro Somos Todos Animais em 2014


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