A vegana arte de apreciar obras de arte (crônica)




Certeza tenho de que a vida vegana é algo bom. Mas, dado esse olhar, o incômodo segue-me onde quer que eu vá. A vida é um grande espetáculo de dor e violência.Tenho culpa se a normalidade é tão assombrosa? Sou ranzinza pela violência ser o status quo?

Adoro música clássica e às vezes vou a concertos, durante os quais, mesmo estando com a mente a anos-luz de distância, inebriado por todo aquele som, aquelas dezenas de instrumentos em acordo, levado por relevos sonoros inimagináveis, há sempre algo me cutucando os neurônios: esses arcos são feitos com crina de cavalo! Incômodo que perdura mesmo na mais delicada sinfonia. E fico pensando: o que mais deve haver de origem animal nesta orquestra? Será que estes instrumentistas capazes de toques tão doces são devoradores de cadáveres? Será que eles festejam uma boa temporada com um grande churrasco? E as crinas? Não há outro modo? Dizem que os materiais sintéticos não produzem um som tão bom. Mas vos pergunto: e o que o cavalo tem a ver com isso? Nunca vi um cavalo apreciador do impressionismo francês.

E os museus? Para mim, reles apreciador sem formação na área, além de tentar entender ou sentir o que uma obra de arte pode me transmitir, fico pensando a cada quadro: será que esta tinta é de origem animal? Sei que já foi comum fabricar tintas com ovos e pigmentos. Mas nunca vi uma galinha cubista. Já vi galinhas amontoadas em cubos de barras de ferro, mas cubistas, nunca.

E o cinema? Durante anos de minha vida frequentei cinemas constantemente. Mas e as películas dos filmes cinematográficos? São feitas com gelatina de origem animal. Tutano de boi assassinado. Agora há cinema digital, mas muitos acham que não é a mesma coisa. Pessoalmente, não sei, mas creio que os bovinos não estão muito ligados nas possibilidades de fotografia nas diferentes mídias.

Essa preocupação não se limita a salas de concertos, cinemas ou museus. Basta passar defronte a qualquer boteco em que haja uma roda de samba, para a agonia retornar: como justificar toda aquela percussão feita de couro de animais, sempre acompanhada de um churrasco?

A violência é tão arraigada em nossa cultura que a maioria de suas manifestações nem é percebida, muito menos questionadas. Seres vivos e sencientes facilmente viram arcos de violino, tambores, pandeiros, tintas, filmes fotográficos... E a vida segue na mais tranquila normalidade. Que espécie de arte é essa?

Nazistas fizeram belos abajures com pele de judeus. Ingleses fizeram belas bolsas para tabaco com saco escrotal de aborígines tasmanianos. Nós fazemos belos filmes com tutano de boi e belas sinfonias com crina de cavalo, e eu não vejo uma diferença substancial. Mudar a espécie da vítima não altera a violência. Não justifica uma alteração de julgamento moral.

Ei, sapateador, estes sapatos são de couro, não?


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