Um Homem Íntegro (Conto, 2009)



Um homem íntegro

I
A gente não escolhe a espécie em que nasce.
Muitas vezes andei amoroso pelas ruas. Os que me viam certamente pensavam: “Aí está uma boa alma”. Mas era por causa deles que tal amorosidade se esvaia. Resolvi ficar em casa.
Que não me venham falar que nunca tentei o convívio. Quando jovem tentei as festas. Rapidamente conclui que eram ótimos lugares para se criar expectativas prévias e lamentos posteriores. Desisti.
Tentei os bares e as moças que os frequentam. Beber e esperar pelas igualmente bêbadas era fácil. Percebi, nem tão rapidamente, que nem só de jorro de esperma vive o homem. Desisti.
Resolvi ser escritor e me colocar ao mundo pelas letras. Comprei um computador e com ele me uni por uma noite. Tentei um romance descrevendo todas as minhas mazelas de amor. Se não fosse interessante, ao menos havia eu certeza de que assim as tiraria do espírito, como a um câncer. Escrevi horas e horas. Inacreditáveis horas seguidas, remoendo mente e corpo sem trégua. Em mínimos detalhes minhas dores feriam a branca tela. Não era um belo texto, de fato. Mas achei que seria imoral dar um belo tratamento estético ao sofrimento, como muitos poetas fizeram. Sofrimento é sofrimento. Mazelas são mazelas e devem ser tratadas como tal.
Ao se aproximar o ponto final, sentia-me em crescente alivio. Era o fim. Inacreditavelmente o fim. O Sol já havia raiado há horas e o trabalho continuava ininterrupto. Era realmente uma cura. Uma extirpação da dor. Uma alegria que nem mais lembrava existir evoluía em mim à medida em que o final se aproximava. Certeza já possuía que, ao fim do texto, seria um homem feliz. Era o último parágrafo e pela primeira vez em tempos, se houvesse alguém para ver, veria que visivelmente eu sorria. De repente, o escuro. 
Algo se chocou contra a rede elétrica.

II
Dez dias depois, resolvi sair de casa. Joguei a inútil máquina queimada no lixo e fui andar pela cidade para não dar um uso mais funesto para aquele monte de cabos.
O primeiro trem não pararia para nos recolher. Estava a caminho de uma imprevista revisão técnica. Após quinze minutos ouvindo dois senhores engravatados discutirem sobre os difíceis meandros da necessidade de crescimento econômico para solucionar o problema do vendedor de chicletes, o trem chegou com todas as pessoas que deveriam estar no trem anterior. Entramos todos, vendedores de chicletes, senhores engravatados, professores, desempregados, advogados... e nos esprememos. Um pastor, com sua Bíblia à tiracolo, pisou no meu pé e pediu perdão. Costumo perdoar, mas dessa vez resolvi virar a cara, esperando que não fosse entendido como dando a outra face.
O centro da cidade, finalmente. Os altos prédios cinzentos me fizeram sentir menos mal.
Parei para almoçar. Sentei no balcão e tentei explicar ao garçom que não como carnes. Foi difícil explicar que o bacon no feijão também é carne. Que peixe é carne, nem tentei. Resolvi tomar um suco. Uma vaca mugia entre os molhos no mostrador à frente. Uma adolescente parou ao meu lado, pediu uma coca-cola, tipo assim, meu. Resolvi pedir um copo descartável para poder sair daquele barulho televisivo. Fui duramente repreendido por um ambientalista na rua. Concordei com ele, mas o mandei à merda.
No ônibus, equipado com televisões, para o estímulo da consciência pública, obrigado a olhar para meu horóscopo ao som de algum tipo de new age de elevador, ouvi a conversa de dois psicólogos. Assuntos existenciais da mais alta complexidade baseados em autores que me pareceram interessantíssimos e dos quais, sem vergonha, anotei os nomes em meu caderninho. O mais jovem então expôs sua total incapacidade para se relacionar com as mulheres. Pedia conselhos. O mais velho indicou um site ótimo na internet.
Naquele momento, não sei se por iluminação ou por falta do que pensar, percebi que desperdiçava minha vida. Achei que poderia ser útil. Voltei para casa e pensei em escrever um manifesto que mostrasse todas as mazelas do mundo e apontasse soluções. Olhei na geladeira e a cerveja havia acabado. Também não encontrei minhas pantufas. Desliguei o gás e a energia elétrica e pulei pela janela.

III
Morri. E por mais incrível que pareça, o paraíso existe. O secretário de entrada número trinta e dois não gostou nada de meu comportamento com o pastor do trem, mas funcionários de graus mais elevados analisaram meu histórico e consideraram que, sendo o pastor membro de certa igreja que anda deixando o Senhor bastante envergonhado no Universo, fariam vistas grossas a minha antipatia momentânea.
Um arcanjo me disse, enquanto tomávamos um café esperando minha vez na inexplicável fila de entrada do Céu, que Deus ficou irritadíssimo com esses papos de reino, de poder, de ter que administrar assembleias e ouvir todo tipo de pedido de milagres nessa altura do campeonato. Parece que o Senhor anda decepcionadíssimo com o processo de maturação de suas crias e anda passando seus dias meditando em um novíssimo planeta sem gente, tentando responder a única pergunta tão antiga quanto “de onde viemos?”: “onde foi que eu errei?”.
Sendo assim, os responsáveis por contabilizar os resultados dos livros do Bem e do Mal, achando que Deus não se importaria, decidiram deixar passar pequenas ofensas a certa classe de líderes religiosos, o que encurtaria muito seus trabalhos.
Após certo tempo, fui aprovado. Perguntaram minha senha de acesso ao paraíso. Não soube responder. Disseram que antes de nascer haviam gravado em mim, em um lugar onde a consciência não poderia apagar, e que agora, sem os limites do corpo, poderia lembrá-la. Mas não lembrei. Creio que se apagou. Ou esqueceram de gravar. Sem conseguir provar que eu era do lote de almas destinado a este paraíso e que poderia dele usufruir, mandaram-me para o inferno geral.
Ao chegar, deram-me uma chave que deveria ser usada para abrir meus aposentos flamejantes e um cartão magnético alimentar, para certificar que só retiraria uma pequena e deliciosa refeição por dia (minha alma não tinha fome, mas era uma forma de gerar apego e desejo por toda a eternidade, uma forma de tortura, pelo que pude entender). Com esta intenção, davam-nos também aguardente. A melhor do Universo. Direto da fonte. No primeiro porre, perdi a chave e, estando ainda em período probatório, fui expulso.
Sem poder viver nos círculos superiores nem nos inferiores e sendo proibido viver em lugar nenhum, voltei a São Paulo. Pretendo fazer uma faculdade. 

Dennis Zagha Bluwol, 2009

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