Oswaldo, o Intelectual Literato (Conto, 2009)



Oswaldo, 
O Intelectual Literato

I
Procurei por toda a biblioteca por uma mesa que estivesse longe de alguém teclando em um maldito computador portátil. Não achei. Sentei na última mesa, encostado na parede do fundo. Ao meu lado, o ar condicionado zumbia fortemente. Meu ouvido direito doía.
Coloquei meus fones de ouvido, ainda que desconectados de qualquer fonte sonora, apenas para abafar os ruídos. Não adiantou. Resolvi não prestar atenção e começar a escrever. Em poucos minutos minha cabeça doía, mas o texto ficava de meu agrado. Resolvi não mudar de mesa para não perder a inspiração.
Virei escritor há duas semanas.
O bom da literatura é que se pode defender ideias sem necessariamente concordar com elas. Nem mesmo é necessário fazer parecer que se possui qualquer ideia com a qual se concorda. Não preciso justificar meus métodos, nem aderir a uma orientação teórica.
Há oito semanas deixei de ser acadêmico. Há duas semanas virei escritor. Há uma semana acabei meu primeiro conto.
O ar condicionado zumbia alto e me fez voltar à realidade e parar de teorizar. O mundo emite sinais pra te colocar no caminho.
Há oito semanas desisti de ser acadêmico. Após um período de crise de abstinência, comecei a escrever ficções. Já era hora de encarar a realidade.
Ainda tenho momentos de vício e começo a teorizar sem perceber.
Um universitário de cabelos pra cima sentou-se na mesa ao lado com seu maldito computador. O ar condicionado passou a me incomodar mais do que nunca, ainda que nos últimos minutos, enquanto teorizava, nem o tenha percebido.
Há uma droga para cada necessidade.
Meu vizinho pôs os fones de ouvido. Fiquei nervoso e fui embora.

II
Carla acordou tarde, jurando a si mesma que nunca mais faria aquilo. Mas nada como o café da manhã para nos fazer desistir das desistências. Tomar decisões antes de tomar café é um erro lógico.
Desistiu de fumar maconha no dia em que provou cocaína. A sábia vida é uma crescente e contínua autodescoberta.
O pão na chapa proveu a energia da manhã. O café lhe deu vida. Olhou ao redor e achou a vida uma merda. Mais um café. Sorriu. Era Oswaldo que se aproximava.

III
Tomando um café recordamos de quando nos conhecemos em uma festa entediante. Carla então me perguntara porque era eu tão acadêmico. Disse que não sabia. Sempre gostara de me impor. O gosto virou hábito, o hábito virou vício e o vício virou profissão. Há uma droga para cada sujeito.
Carla não queria mais fugir a todo instante do vazio.
Contei de minha nova atividade.
Há tempos organizava mentalmente a tragédia. Agora a construo.
IV
Estava cansado e decidido a mudar de vida. A sujeira dos outros é mais suja. Procurou o departamento de recursos humanos. Entregou crachá e vassoura. Sentiu-se vitorioso. Tomou cerveja e gargalhou. Sentiu-se livre. Pôs-se a pensar e, pela primeira vez na vida, sentiu-se capaz de ser dono de seu próprio nariz. Lembrou-se do desvio de septo. Outra cerveja e casa. Banho. Futebol. Pão, margarina, cama. Nova aurora.
Saiu cedo sentindo-se ativo. Irradiava compaixão no ponto de ônibus. Fez longa viagem. Teve a oportunidade de pensar em nada. Gostaria de estar em outro lugar; olhou pela janela. Trepidava. Avistou um outdoor e alegrou-se. Sentiu-se ativo. Cochilou. Sonhou, mas esqueceu. Acordou. Metade do caminho vencido. Sentiu-se novamente vitorioso. Orgulhou-se. Pequena risada de prazer, repreendida pelo passageiro ao lado. Sentiu-se culpado. Olhou para baixo e esperou. O pão matinal já sumira. Chegou. Bolo e café na calçada. Sentiu-se bem. Alguém gritou “João”. Achou que era com ele, mas não avistou ninguém. Sentiu-se só. Andou. Na multidão, sentiu-se pleno. 
Entre tropeções, esbarrões e gritos, sentiu-se feliz. Esperou. Procurou. Mais um café. Conversou. Voltou à busca. Sentiu-se esperançoso. Alegrou-se. Sorriu e indagou:
- Vai graxa?
Mas Oswaldo usava sandálias.

V
Arranjei uma ocupação para conseguir sustentar-me e trabalhar em minha obra literária. Das 9:00 às 12:00 trabalho de ônibus em ônibus repetindo sempre o mesmo trágico bordão:

“Bom dia, senhoras e senhores. Meu nome é Oswaldo. Eu podia estar roubando, mas estou aqui pedindo a ajuda de vocês. Eu sofro de um mal sem cura. Nasci intelectual, o que não me permite trabalhar, mas tento viver honestamente com isso. Agradeço muito qualquer ajuda. Preciso muito de qualquer trocado. Não é fácil viver com a minha situação. Por causa dela preciso constantemente tomar cerveja e citar Nietzsche em alta voz. Não sou ladrão nem desonesto. Tenho cá meu velho Zaratustra rabiscado para provar. Desculpem o incômodo. Agradeço qualquer moeda. Uma boa viagem a todos e muito obrigado pela atenção”.

VI
Há oito semanas deixei de ser acadêmico. Há duas semanas virei escritor. Há uma semana acabei meu primeiro conto.
Trabalhador no setor de transportes e escritor.
Essa é a lenda. Meu mito. Ex-acadêmico, atual literato e trabalhador braçal. Bêbado de carteirinha, adorador da própria imagem. Beneficiário do próprio niilismo messiânico.
Dennis Zagha Bluwol,  2009

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