O Poder da Comunidade (Conto, 2009)


O Poder da Comunidade

I
Em Outubro deste ano, o magnânimo prefeito, aclamado por seus eleitores, fez uma grande reforma nas praças públicas da cidade. Com o apoio da iniciativa privada e os honestos trabalhos de uma empresa privada corretamente licitada, ousou sonhar com novos centros públicos. Todas as grandes praças da cidade passaram por imensas reformas. Novos gramados, novas mudas de árvores, limpeza dos lagos e novos bancos. 
Os novos modelos dos bancos eram a grande sensação. Importados da Europa, pelo que disse o noticiário televisivo. Foram inteiramente pagos por grandes empresas bancárias, que levam seus louváveis nomes em pequenas placas junto aos bancos. Como previsto, recorrendo a infames tentativas de humor publicitário como “o banco que apoia seu banco” ou “nosso banco está sempre pronto pra te apoiar”.
Eram bancos com a mais nova tecnologia para a comodidade dos transeuntes, com curvas para encaixar os glúteos e braços individuais que impedem que a pessoa sentada ao lado grude demais no vizinho.
Foi aclamado o prefeito no dia da inauguração dos novíssimos bancos.
À noite, chegaram os usuários das praças, para mais um renovador cochilo ao ar livre. Estavam felizes por poderem voltar a utilizar as praças após tantos meses de reforma. O bom filho à casa torna.
Surpresa.

II
No dia seguinte, dezenas de mendigos sonolentos bateram à porta do escritório do prefeito. Atendidos pelo secretário do lazer expuseram a reclamação, que foi respondida como piada. Como ousam criticar os novíssimos bancos europeus tão estimados pelos eleitores? Desde quando bancos são camas?
Os mendigos resolveram dormir na antessala do prefeito.
O prefeito, certo de sua benevolência, decidiu colocar-se ao lado dos sonolentos. Criou, para os amados cidadãos sem renda, um novo pacote de auxílio.
No dia seguinte, era lançado, em rede de televisão, o programa bolsa-cafeína.

III
O presidente da República, observando a reação positiva que a genial ideia de seu colega prefeito gerou nos índices de aprovação de seu governo por parte da benévola elite citadina, sentiu amor no coração e declarou que o mal do sono estaria erradicado da querida pátria em dois anos.
Abriu-se então licitação para decidir qual empresa distribuiria o café mensalmente aos sem-teto da nação. 
Dois meses depois, sacos de café apodreciam no chão das praças por todo o país, esperando por água quente e coador.
Provou-se complicada demais a generosidade do estimado benfeitor. Um desastre em escala nacional. Pensou-se na opção de um vale-café nos botecos, mas um acordo com o sindicato dos trabalhadores de bares, botecos, tabernas e bodegas não fora alcançado.
O sono era demais e uma resolução emergencial era necessária. Ligou o prefeito, autor do projeto original, para o presidente. O convenceu a lançar uma medida provisória legalizando o uso de cocaína para casos especiais, especialmente no caso de pessoas com baixa renda sem acesso à cafeína. Uma licitação foi então aberta para decidir quem forneceria o benefício.
Provando a retidão e o compromisso do excelentíssimo presidente da República e a visão de futuro do prefeito-filósofo, em dois dias todo o esquema já estava pronto. Em uma semana começara a distribuição.
Havia festas nas praças de todo o país.

IV
Eis que gerou-se inveja entre os maconheiros. Por que deveriam pagar pela maconha e ainda serem criminalizados? Tramaram um ato em frente ao escritório do prefeito, exigindo a legalização da erva. Um debate público entre defensores dos benefícios e atacantes dos malefícios da maconha e da cocaína foi feito em uma universidade. Os usuários da maconha defendiam sua paixão. Os da cocaína idem. Os que gostavam das duas eram vistos como pelegos, sempre em cima do muro.
O movimento pela legalização da maconha levou um gravador para registrar tão quente debate. Infelizmente, o responsável lembrou-se de apertar a tecla de gravação passada mais de uma hora. Após cinco minutos, a fita acabou, pois havia esquecido de rebobiná-la. Não percebeu, pois deixou o gravador e saiu pra fumar um, pra apreciar melhor a discussão.
Após pesada peleja, nenhuma conclusão foi tirada. Uns falavam de maneira desconexa, outros gritavam em fúria. 
Instaurou-se uma crise de velocidades.

V
Em escala global nada se anunciou.
Em pouco tempo os bancos haviam se degradado e sido degradados. As medidas assistencialistas acabaram juntamente com a gestão dos benfeitores. A normalidade voltou à tona. A sociedade recuperou-se. 
Belas noites de sono ao ar livre agora acalmam o espírito da amável população. Concomitantemente, no espaço sideral, nossa civilização chega ao seu apogeu no momento crucial em que astronautas brigam para decidir quem vai usar o melhor banheiro na Estação Espacial Internacional.

Dennis Zagha Bluwol, 2009

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